terça-feira, 18 de setembro de 2012

Esqueceram de mim - de Cláudio Antônio de Almeida

ESQUECERAM DE MIM


Creio que toda família tem uma história dessas – esqueceram um filho para trás e só deram falta horas ou dias depois, ou se deram falta. Sim, tem gente tão desligada que precisa alguém achar para se tocar. Mas cada um conta como pode e sente os efeitos como deseja, se não foi ele o esquecido, no caso. E nessa história, olha eu lá abandonado, largado, no meio da noite.
Meu pai, Manoel José de Almeida, era candidato a Deputado Estadual em Minas Gerais    e, política não era coisa de criança, mas não sei porque razão, eu fazia parte da comitiva de meu pai à uma cidade do norte de Minas.  Tinha entre dez e doze anos, magrelo e comprido, mas era o crianção. Meu pai tinha um motorista chamado Paulo, era brincalhão e se tornou em pouco tempo o ídolo da meninada, pois fazia tudo o que a gente gostava, inclusive as coisas proibidas, como usar o carro da Caio Martins para finalidades não públicas. Apesar de estudar num Colégio num bairro distante, não me lembro de ter sido conduzido por um carro público até o estabelecimento. E meu pai fazia essas coisas naturalmente. Não me lembro dele dando ordens para que não usassem para a família os veículos públicos. Era espontâneo, e eu e meu irmão íamos de bonde para a escola, quando não íamos a pé, para fazer economia, com vistas a utilizar a grana em algo mais interessante. Também não me lembro de reclamar dessa maratona diária, para chegar até àquele templo dos padres escolápios, dos quais não guardo boas lembranças. Mas essa história fica para outro momento.
Mas chegamos a Januária e fomos para a casa do chefe-político da cidade. Com o Estado Novo, época da ditadura getulista, os governadores dos Estados eram nomeados pelo Presidente e, os Prefeitos Municipais, pelo Governador. Eram interventores. Então, o coronelismo imperava em larga escala, principalmente por se tratar de pessoas de grande posse e relações políticas suspeitas, mas que lhes rendiam os dividendos necessários. Daí nasciam os donos de cartório, o delegado de polícia, a diretora da escola, o chefe dos correios e telégrafos, etc. Meu pai havia mandado confeccionar suas cédulas para a eleição. Lembro-me que a sala da minha casa ficou superlotada com os pacotes de cédulas e propagandas eleitorais. E isso tudo pra mim, era uma grande novidade. Estava penetrando num mundo hermético da política mineira. Os mais velhos diziam que os grandes políticos do estado eram descendentes de uma mineira, muito especial, chamada Joaquina de Pompeu. Diziam que ela se casava com homens de posse, e com o tempo, eles desapareciam. Então ela ficava com as propriedades dele. Surgia novo casamento e o fato sucedia com aquele novo infeliz. Contavam que ela tinha terras em toda a margem esquerda do rio São Francisco, chegando até ao Estado de Goiás, onde havia uma fazenda chamada “papuda”, pertencente a ela, localizada hoje no Distrito Federal. Mas aquela mulher mandava seus filhos e protegidos estudar num colégio chamado “Caraça”. Por ali, como em Harvard, nos States, passou a nata da sociedade mineira - agricultores, pecuaristas, cafeicultores, comerciantes, empresários, banqueiros, etc. E os jovens formados ali tinham um destino certo. Primeiro, eram ótimos partidos para um bom enlace, segundo, preparados para ocupar uma deputança e dominar o cenário político de sua região, onde já existia um pai nomeado prefeito e todo um arcabouço de regalias.
E Januária tinha o seu “barão”. Morava na melhor casa, normalmente, a única rua calçada, era cortejado e respeitado. Dono de propriedades rurais e muito gado. Isso sim, era o status. Diziam que a maior parte das terras foram tomadas dos pequenos posseiros e passadas em “seus cartórios”, para o nome dos membros da família. As vezes não conheciam dez por cento das terras. Eram os autênticos “donatários” portugueses, possuidores das capitanias hereditárias. Lembro-me bem, era um senhor muito gordo e falava assoprando. Estranho, mas era muito difícil entender. Imagino ele comendo farofa. Creio que as pessoas faziam que entendiam para não criar um conflito lingüístico com a autoridade. A esposa, igualmente gorda, se desdobrava em agradar meu pai. Tinha uma filha, mais ou menos da minha idade, igualmente gorda, mas não se dignou em momento algum a destilar algum tipo olhar para o humilde visitante. E o pessoal ia chegando e falando alto. Passaram várias garrafadas de café e biscoitos. Era uma festa. Via que meu pai era o centro das atenções e todos queriam conversar com ele, dar aquelas batidinhas nas costas demonstrando cumplicidade e comprometimento. Essas coisas são boas de se perceber. Aliás, eram, pois os tempos mudaram e a política mudou muito. Ainda bem. Cada uma daquelas pessoas era um tipo de segundo escalão do poder central da cidade. O Prefeito distribuía as cédulas para aquelas pessoas, que eram, no dia da eleição, colocadas dentro de um envelope, com o destino de cada candidato lacrado. O pobre do eleitor nem sabia o que estava ali dentro, mas era o instrumento de legalização do ato, pois tinha um título de eleitor. E olha que tinha eleitor morto há vários anos e que continuava lá firme, cumprindo seu compromisso cívico perante a justiça eleitoral. Meu pai nascera naquela cidade, mas não me lembro, em minha infância de ter passado férias por lá. Imagino que não existiam parentes. Nossas férias eram no sul de Minas, na terra de minha mãe. Meu pai era de família pobre e humilde. Não era dotado dos sobrenomes que destacam os domínios financeiros do município. Era um Almeida. Apenas um Almeida, no meio daqueles lastros que dominavam o município e o poderoso Estado de Minas. À época, se praticava a chamada política do café com leite, ou seja, num ano é escolhido um candidato paulista e no outro, um mineiro. Os outros Estados dançavam, pois o domínio era mesmo dos dois produtores de café e leite. Domínio econômico. E eram nesses Estados que surgiam os grande Bancos, os conglomerados industriais e comerciais. E meu pai foi se meter a ser Deputado no meio daqueles coronéis poderosos, que normalmente, faziam de seus filhos ou enteados, seus herdeiros políticos. Via que meu pai estava fora do seu mundo, seu ambiente, seus discos, sua música, seus livros. A linguagem ali era outra, mas, pensava, é a tal de missão que dizem ter que enfrentar. E ele realmente tinha um compromisso, pois assumiu a responsabilidade, junto a sua inseparável mulher, de criar uma instituição para a recuperação e amparo do menor carente ou abandonado no Estado. Era seu projeto político. Não havia outra alternativa, pois a obra crescia e os recursos financeiros eram finitos em pouco tempo. Lembro-me um dia meu pai indo à casa de um Deputado Federal, num bairro muito chique, em Belo Horizonte. Ele iria pedir para que sua obra fosse contemplada nas subvenções orçamentárias do ano seguinte. Chovia muito e a mulher do Deputado nos atendeu na porta e nos deixou na porta, tomando chuva, enquanto chamava o marido. O homenzinho, bem amestrado, também não convidou meu pai para entrar, resolvendo as pendengas ali mesmo, na chuva. Ele não, apenas eu e meu pai molhávamos. Senti algo de diferente naquele dia, que hoje ainda mexe com meus brios. O Manoel de Almeida era humilde, mas soberbo. Mas não esqueci. Dizem que o mineiro não guarda rancor, mas não esquece. Ta coberto de razão, quem teve essa percepção.
O dia foi de muito papo, muito café e biscoito rolando pela casa. Ali era o centro de decisão. Percebi logo. Não adiantava pensar em visitar pessoas pela cidade, pois ali era o centro de todas as decisões municipais e regionais. E nada se faz sem a moeda de troca. Tem um santo que entende bem desse negócio – é dando que se recebe. E o movimento começa a diminuir, quando todos começam a se dirigir a pé para o prédio onde funcionava o cinema. Era um tipo de teatro, grande, bonito, com uma arquitetura que denotava os traços de um grande engenheiro-arquiteto naquelas colunas. Sentei-me na primeira fila e lá começaram os discursos. E bota discurso nisso. Cada um falava como se fosse o principal orador do evento. Eu apenas observava e o sono batia cada vez mais forte. Eu me esforçava para agüentar e sobreviver àquele falatório, mas o cansaço foi mais forte. Viajamos o dia todo de Belo Horizonte até aquela cidade e não havia um centímetro de asfalto que pudesse amenizar os solavancos do carro, dirigido pelo Paulão. E eu dormi e dormi muito. Não sei nem se meu pai chegou a falar, nem quanto tempo aquele falatório durou, pois deitei-me nos braços de orfeu e me entreguei de forma explícita.
Num certo momento da noite, acordei. Estava tudo escuro. Não conseguia associar o tal do cinema com o lugar onde eu me encontrava. Naquela época os pais carregavam a gente quando dormia e acordávamos em lugar nunca dantes imaginado. Mas não era bem o meu caso. ESQUECERAM DE MIM, literalmente. Não havia uma viva alma no cinema e estava tudo escuro. Não cheguei a entrar em pânico, ainda bem, mas procurei uma lógica de saída. Segui rumo à parte superior das cadeiras e vi uma porta encostada. Ainda bem, o segurança não era de confiança. As ruas da cidade eram iluminadas por umas lâmpadas que não conseguiam nem mesmo se iluminar. Era uma brasinha apenas. Mas dava pra distinguir que ali havia um poste. Ouvi um barulho distante, parecendo uma aglomeração, vozes, e até foguetes. Pra quem está perdido, qualquer terra a vista é tudo o que se deseja. Segui para a direção do barulho e era uma grande concentração de pessoas – o chamado comício. Tinha música, discursos, foguetório a vontade. Uma festa. E eu lá, sozinho, sem pai nem mãe. Vi que havia um palanque, onde ficavam as pessoas importantes. E, observando melhor, lá estava meu pai, alegre, sorridente, cumprimentando a todos, demonstrando felicidade total. Com muito custo, consegui chegar até o tal palanque. Ali, um segurança, desses chatos mesmo, impediu a minha subida à corte. E agora, já fui esquecido e agora barrado. Preciso de nova chance. Mas menino está pronto pra qualquer coisa. Foi quando decidi escalar o palanque e atingi o piso dos felizes. Lá em baixo estavam aqueles que sempre estarão lá em baixo. Dão quorum e aplaudem sempre. Também são felizes, será? Meu pai era o orador da hora. Eu achava aquilo muito importante. Como uma pessoa consegue falar tanta coisa sem estar lendo. Como consegue armazenar tudo na cabeça e dizer direitinho para todo mundo ouvir. É, bons tempos de criança. Neste momento, meu pai perceber a minha presença. Senti-me aliviado, pois eu ainda imaginava que teria que dormir em algum lugar e, mais um esquecimento, gréu. Olha pra mim e lembra que havia me esquecido no cinema. Sorri e me dá um abraço e continua a sua fala. Já não me preocupava mais com o que ele falava, nem de onde vinham aquelas palavras, pois eu agora estava seguro, nos braços de meu pai distraído. 


CLÁUDIO ANTÔNIO DE ALMEIDA 

SETEMBRO DE 2012.

Um comentário:

  1. Dos braços de Orfeu para os braços de um pai distraído. Penso que a única coisa que o vô Manoel não se esquecia nunca era de um livro, que sempre o acompanhava. Leitura sempre presente! Bom leitor, bom exemplo para futuras gerações!
    Sobre esquecimentos, até vale ser esquecido e viver um dia emocionante, assim como no relato do Cláudio. Gostei! Conte mais!

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