ESQUECERAM
DE MIM
Creio que toda família
tem uma história dessas – esqueceram um filho
para trás e só deram falta horas ou dias depois, ou se
deram falta. Sim, tem
gente tão desligada que precisa alguém achar para se tocar. Mas cada um
conta
como pode e sente os efeitos como deseja, se não foi
ele o esquecido, no caso. E nessa história, olha eu lá
abandonado, largado, no meio da noite.
Meu pai, Manoel José
de Almeida,
era candidato a Deputado Estadual em Minas Gerais e,
política não era coisa de criança,
mas não sei porque razão, eu fazia parte da comitiva de meu pai à uma cidade do norte de Minas. Tinha
entre dez e doze anos, magrelo e comprido, mas era o crianção.
Meu pai tinha um motorista chamado Paulo, era brincalhão e se tornou em
pouco
tempo o ídolo da meninada, pois fazia tudo o que a gente gostava,
inclusive as coisas proibidas, como usar o carro da Caio Martins para
finalidades
não públicas. Apesar de estudar num Colégio num bairro distante, não me
lembro
de ter sido conduzido por um carro público até o estabelecimento. E meu
pai
fazia essas coisas naturalmente. Não me lembro dele dando ordens para
que não
usassem para a família os veículos públicos. Era espontâneo, e eu e meu
irmão
íamos de bonde para a escola, quando não íamos a pé, para fazer
economia, com
vistas a utilizar a grana em algo mais interessante. Também não me
lembro de
reclamar dessa maratona diária, para chegar até àquele templo dos padres
escolápios, dos quais não guardo boas lembranças. Mas essa
história fica para outro momento.
Mas chegamos a Januária
e fomos para a casa do chefe-político da cidade.
Com o Estado Novo, época da ditadura getulista, os governadores dos
Estados
eram nomeados pelo Presidente e, os Prefeitos Municipais, pelo
Governador. Eram
interventores. Então, o coronelismo imperava em larga
escala, principalmente por se tratar de pessoas de grande posse e
relações
políticas suspeitas, mas que lhes rendiam os dividendos necessários. Daí
nasciam os donos de cartório, o delegado de polícia, a
diretora da escola, o chefe dos correios e telégrafos, etc. Meu pai
havia
mandado confeccionar suas cédulas para a eleição. Lembro-me que a sala
da minha
casa ficou superlotada com os pacotes de cédulas e propagandas
eleitorais. E
isso tudo pra mim, era uma grande novidade.
Estava penetrando num mundo
hermético da política mineira. Os mais velhos diziam que os grandes
políticos
do estado eram descendentes de uma mineira, muito especial, chamada
Joaquina de
Pompeu. Diziam que ela se casava com homens de posse, e com o tempo,
eles
desapareciam. Então ela ficava com as propriedades dele. Surgia novo
casamento
e o fato sucedia com aquele novo infeliz. Contavam que ela tinha terras
em toda
a margem esquerda do rio São Francisco, chegando até ao Estado de Goiás,
onde
havia uma fazenda chamada “papuda”, pertencente a ela, localizada
hoje no Distrito Federal. Mas aquela mulher mandava seus filhos e
protegidos estudar num colégio chamado “Caraça”. Por ali,
como em Harvard, nos States, passou a nata da sociedade mineira -
agricultores,
pecuaristas, cafeicultores, comerciantes, empresários, banqueiros, etc. E
os
jovens formados ali tinham um destino certo. Primeiro, eram ótimos
partidos
para um bom enlace, segundo, preparados para ocupar uma deputança
e dominar o cenário político de sua região, onde já existia um pai
nomeado
prefeito e todo um arcabouço de regalias.
E Januária
tinha o seu “barão”. Morava na melhor casa, normalmente, a única
rua calçada, era cortejado e respeitado. Dono de
propriedades rurais e muito gado. Isso sim, era o status. Diziam que a
maior
parte das terras foram tomadas dos pequenos posseiros e
passadas em “seus cartórios”, para o nome dos membros da família. As
vezes não conheciam dez por cento das terras. Eram os
autênticos “donatários” portugueses, possuidores das capitanias
hereditárias.
Lembro-me bem, era um senhor muito gordo e falava assoprando. Estranho,
mas era
muito difícil entender. Imagino ele comendo farofa. Creio
que as pessoas faziam que entendiam para não criar um
conflito lingüístico com a autoridade. A esposa, igualmente gorda, se
desdobrava em agradar meu pai. Tinha uma filha, mais ou menos da minha
idade, igualmente
gorda, mas não se dignou em momento algum a destilar algum tipo olhar
para o
humilde visitante. E o pessoal ia chegando e falando alto. Passaram
várias
garrafadas de café e biscoitos. Era uma festa. Via que meu pai era o
centro das
atenções e todos queriam conversar com ele, dar aquelas batidinhas nas
costas
demonstrando cumplicidade e comprometimento. Essas coisas são boas de se
perceber. Aliás, eram, pois os tempos mudaram e a política mudou muito.
Ainda
bem. Cada uma daquelas pessoas era um tipo de segundo escalão do poder
central
da cidade. O Prefeito distribuía as cédulas para aquelas pessoas, que
eram, no
dia da eleição, colocadas dentro de um envelope, com o destino de cada
candidato lacrado. O pobre do eleitor nem sabia o que estava ali dentro,
mas
era o instrumento de legalização do ato, pois tinha um título de
eleitor. E
olha que tinha eleitor morto há vários anos e que continuava lá firme,
cumprindo
seu compromisso cívico perante a justiça eleitoral. Meu pai nascera
naquela
cidade, mas não me lembro, em minha infância de ter passado férias por
lá.
Imagino que não existiam parentes. Nossas férias eram no sul de Minas,
na terra
de minha mãe. Meu pai era de família pobre e humilde. Não era dotado dos
sobrenomes que destacam os domínios financeiros do município. Era um
Almeida. Apenas
um Almeida, no meio daqueles lastros que dominavam o município e o
poderoso
Estado de Minas. À época, se praticava a chamada política do café com
leite, ou
seja, num ano é escolhido um candidato paulista e no outro, um mineiro.
Os
outros Estados dançavam, pois o domínio era mesmo dos dois produtores de
café e
leite. Domínio econômico. E eram nesses Estados que surgiam os
grande Bancos, os conglomerados industriais e comerciais. E meu
pai foi
se meter a ser Deputado no meio daqueles coronéis poderosos, que
normalmente,
faziam de seus filhos ou enteados, seus herdeiros políticos. Via que meu
pai estava fora do seu mundo, seu ambiente, seus discos,
sua
música, seus livros. A linguagem ali era outra, mas, pensava, é a tal de
missão
que dizem ter que enfrentar. E ele realmente tinha um compromisso, pois
assumiu
a responsabilidade, junto a sua inseparável mulher, de criar uma
instituição
para a recuperação e amparo do menor carente ou abandonado no Estado.
Era seu
projeto político. Não havia outra alternativa, pois a obra crescia e os
recursos financeiros eram finitos em pouco tempo. Lembro-me
um dia meu pai indo à casa de um Deputado Federal, num bairro muito
chique, em Belo Horizonte. Ele
iria pedir para que sua obra fosse contemplada nas subvenções
orçamentárias do
ano seguinte. Chovia muito e a mulher do Deputado nos atendeu na porta e
nos
deixou na porta, tomando chuva, enquanto chamava o marido. O homenzinho,
bem
amestrado, também não convidou meu pai para entrar, resolvendo as
pendengas ali
mesmo, na chuva. Ele não, apenas eu e meu pai molhávamos. Senti algo de
diferente naquele dia, que hoje ainda mexe com meus brios. O Manoel de
Almeida
era humilde, mas soberbo. Mas não esqueci. Dizem que o mineiro não
guarda
rancor, mas não esquece. Ta coberto de razão, quem teve essa percepção.
O dia foi de muito papo,
muito café e biscoito rolando pela casa. Ali era o centro de decisão.
Percebi
logo. Não adiantava pensar em visitar pessoas pela cidade, pois ali era o
centro de todas as decisões municipais e regionais. E nada se faz sem a
moeda
de troca. Tem um santo que entende bem desse negócio – é dando que se
recebe. E o movimento começa a diminuir, quando todos começam a se
dirigir a pé
para o prédio onde funcionava o cinema. Era um tipo de teatro, grande,
bonito,
com uma arquitetura que denotava os traços de um grande
engenheiro-arquiteto
naquelas colunas. Sentei-me na primeira fila e lá começaram os
discursos. E
bota discurso nisso. Cada um falava como se fosse o principal orador do
evento.
Eu apenas observava e o sono batia cada vez mais forte. Eu me esforçava
para
agüentar e sobreviver àquele falatório, mas o cansaço foi mais forte.
Viajamos
o dia todo de Belo Horizonte até aquela cidade e não havia um centímetro
de
asfalto que pudesse amenizar os solavancos do carro, dirigido pelo
Paulão. E eu
dormi e dormi muito. Não sei nem se meu pai chegou a falar, nem quanto
tempo
aquele falatório durou, pois deitei-me nos braços de orfeu
e me entreguei de forma explícita.
Num certo momento da
noite, acordei. Estava tudo escuro. Não conseguia associar o tal do
cinema com
o lugar onde eu me encontrava. Naquela época os pais carregavam a gente
quando
dormia e acordávamos em lugar nunca dantes imaginado. Mas não era bem o
meu
caso. ESQUECERAM DE MIM,
literalmente. Não havia uma viva alma no cinema e
estava tudo escuro. Não cheguei a entrar em pânico, ainda bem, mas
procurei uma
lógica de saída. Segui rumo à parte superior das cadeiras e vi uma porta
encostada. Ainda bem, o segurança não era de confiança. As ruas da
cidade eram
iluminadas por umas lâmpadas que não conseguiam nem mesmo se iluminar.
Era uma
brasinha apenas. Mas dava pra distinguir que ali havia um poste. Ouvi um
barulho distante, parecendo uma aglomeração, vozes, e até foguetes. Pra
quem está
perdido, qualquer terra a vista é tudo o que se deseja. Segui para a
direção do
barulho e era uma grande concentração de pessoas – o chamado comício.
Tinha música, discursos, foguetório a vontade. Uma
festa. E eu lá, sozinho, sem pai nem mãe. Vi que havia um palanque, onde
ficavam as pessoas importantes. E, observando melhor, lá estava meu pai,
alegre, sorridente, cumprimentando a todos, demonstrando felicidade
total. Com
muito custo, consegui chegar até o tal palanque. Ali, um segurança,
desses
chatos mesmo, impediu a minha subida à corte. E agora, já fui esquecido e
agora
barrado. Preciso de nova chance. Mas menino está pronto pra qualquer
coisa. Foi
quando decidi escalar o palanque e atingi o piso dos felizes. Lá em
baixo
estavam aqueles que sempre estarão lá em baixo. Dão quorum e aplaudem
sempre.
Também são felizes, será? Meu pai era o orador da hora. Eu achava aquilo
muito
importante. Como uma pessoa consegue falar tanta coisa sem estar lendo.
Como
consegue armazenar tudo na cabeça e dizer direitinho para todo mundo
ouvir. É, bons tempos de criança. Neste momento, meu pai
perceber a
minha presença. Senti-me aliviado, pois eu ainda imaginava que teria que
dormir
em algum lugar e, mais um esquecimento, gréu. Olha
pra mim e lembra que havia me esquecido no
cinema. Sorri e me dá um abraço e
continua a sua fala. Já não me preocupava mais com o que ele falava, nem
de
onde vinham aquelas palavras, pois eu agora estava seguro, nos braços de
meu
pai distraído.
CLÁUDIO ANTÔNIO DE ALMEIDA
SETEMBRO DE 2012.
Dos braços de Orfeu para os braços de um pai distraído. Penso que a única coisa que o vô Manoel não se esquecia nunca era de um livro, que sempre o acompanhava. Leitura sempre presente! Bom leitor, bom exemplo para futuras gerações!
ResponderExcluirSobre esquecimentos, até vale ser esquecido e viver um dia emocionante, assim como no relato do Cláudio. Gostei! Conte mais!