quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Texto de Cláudio Antônio de Almeida

SOBERBO

O fato de ser de origem humilde, pai sapateiro, mãe lavadeira, não seria argumento para Manoel José de Almeida baixar o topete para qualquer um. E isso era perceptível, só de observar o seu porte, sua imponência, sua coluna vertebral ereta. Não se curvava nunca, mesmo tendo os topetudos pela frente. E olha que foram vários em sua vida de menino, no meio de tantos adultos, donos da verdade.
Mas um episódio me chamou muito a atenção. Éramos pequenos e meu pai juntava todos os filhos ao seu redor na cama de casal e começava a contar histórias. Falava com a mesma desenvoltura sobre Bahr,  Bethoven, Chopin, Voltaire, Chopenhauer, Freud, sobre a Revolução Francesa, a Segunda Guerra Mundial. Eram momentos de muita atenção, pois o tempo era pouco para tanta curiosidade. Naquela época não existia televisão, então, meu pai chegava do trabalho e reunia todos os filhos na sala, ao redor da “radiola”, para ouvir músicas clássicas, de todas as vertentes. Os discos eram muito pesados e assim, ele empilhava as coleções ao lado do aparelho para facilitar a seleção, de acordo com seus critérios. Eram 78 rotações por minuto, assim, o disco tocava rapidamente, tendo que ser trocado a todo momento. Morávamos numa casa, em Belo Horizonte, de dois pavimentos. Ele teve a idéia de colocar um auto-falante nos nossos quartos, que ficavam no segundo andar. Assim, dormíamos embalados pelas músicas clássicas.
Mas os casos mais gostosos eram realmente aqueles que diziam respeito à sua vida pessoal, quando criança, nas revoluções de 1930 e 1932. A curiosidade era grande e, como as idades variavam, ele procurava ser suficientemente didático, para prender a atenção dos mais novos. Assim nossa infância foi muito rica, a despeito de não haver televisão, vídeos, computadores e até mesmo os incríveis celulares. E foi numa dessas que ele contou a história de quando atravessou a nado o Rio São Francisco, em frente a cidade de Januária, um dos pontos mais largos daquele que denominavam como o  “rio da unidade nacional”, por percorrer diversos Estados em seu percurso até o mar.
Pois bem, atravessar o rio São Francisco, para todo menino da cidade, era um desafio. Era mais ou menos como a sua primeira vez. Os mais velhos não davam maior importância ao feito, mas entre os garotos, era ponto de honra essa conquista. Passava, de alguma forma, a ser incluído numa turma seleta de garotos que conseguiam o feito. Realmente era uma grande façanha. Não consigo imaginar quantos metros distam de uma margem a outra, mas a força das águas é o bastante para assustar qualquer um a pensar em desafiar o Rio. E lá se foi Nezinho. Era seu grande dia. A meninada já sabia do seu desejo em romper aquela barreira. Já estava chegando a uma idade, 12 anos, onde a grande maioria já havia conseguido conquistar aquele feito. E não era somente atravessar o rio. Tinha que voltar, pois a casa dele ficava do outro lado da margem esquerda e, não se admitia a qualquer um o uso de uma carona numa canoa, para superar o cansaço. E bota cansaço nisso.  De constituição física franzina, Nezinho, sabia que o desafio teria alto custo. Naturalmente que seus pais e até mesmo os irmãos não poderiam tomar conhecimento, caso contrario iria haver uma proibição, pois sabiam dos riscos daquela travessia. Muitos foram os que se afogaram naquela investida. E lá vai Manoel de Almeida, rumo à margem direita do São Francisco. Ele já conhecia, ou tinha informações acerca dos pontos perigosos e aqueles passíveis de optar por uma mudança de percurso. Chegar ao outro lado foi algo de espetacular, mas e agora?  Tinha que retornar e a turma dos moleques estava lá para registrar a grande conquista do companheiro. Não poderia descansar e teria que retornar imediatamente às águas daquele caudaloso rio, imediatamente. As braçadas eram regulares, mantendo um ritmo tal que possibilitasse enfrentar os últimos momentos, que eram os mais delicados. Seu corpo já começava a não responder ao cansaço. A juventude sempre ajuda nesses momentos, mas... Para chegar à margem esquerda, no ponto combinado com os garotos, ele teria que saltar um pouco acima, mas o importante seria a técnica de singrar as águas de uma forma transversal. Sim, ele nadava contra a correnteza, melhor dizendo, quebrando assim, a velocidade das águas e não carregando seu franzino corpo para os pontos de maior profundidade do rio. E o cansaço estava vindo, e cada momento, mais intenso, fazendo seus frágeis músculos se tornarem mais doloridos. Percebeu que uma canoa passava a alguns metros, mas não pensou em pedir ajuda. As pessoas da canoa não se manifestavam, observando apenas o garoto debater com aquele turbilhão de águas. Num certo momento, já exausto, percebeu uma moita de capim no meio do rio. Aquilo era um sinal de que havia uma coroa de areia, onde poderia descansar um pouco. Esse tipo de coroa era comum ocorrer, devido ao constante movimento das águas, formando e destruindo montes de areia, dentro do rio. Nadou como um louco até aquela esperança e, quando segura o arbusto, sente que não tem nenhum apoio. Nada havia para abrandar eu inícios de desespero. As pessoas da canoa ainda o observam, não demonstrando qualquer preocupação ou esboço de ajuda. E lá vai Nezinho em direção àquela margem esquerda que é o seu maior desafio na vida. Sabia que aqueles metros finais iriam definir muita coisa em sua vida. Muita coisa estaria em jogo a partir daquele momento. Não poderia se entregar e deixar o rio levá-lo. Com certeza sairia muito abaixo, onde poderia com menor desgaste, alcançar um barranco para subir. Mas e a turma? Isso ai sim, é a grande questão. Só sendo menino para entender essa fração de segundos para uma tomada de decisão. A cada braçada, Nezinho sente que a margem está chegando e chegando. Faltando apenas alguns metros, eis que um dos ocupantes da canoa, estica o braço e oferece ajuda ao garoto. Este olha pra o rosto do infeliz, fixa seus olhos e segue em frente. Com mais algumas braçadas, chega até a margem e tem um sorriso que ilustraria a maior conquista de todos os tempos no mundo. O barqueiro observa aquele jeito matreiro do garoto e diz: SUBERBO. Esse era o Nezinho, menino de Januária, que atravessou a nado o Rio São Francisco, num dos seus pontos mais largos. Ficou famoso, entre os meninos, e deu uma aula de vida àqueles que procuravam tirar proveito de sua vitória. A mão estendida, nem sempre é bem vinda.





CLÁUDIO ANTÔNIO DE ALMEIDA

BRASÍLIA – AGOSTO DE 2012

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