SOBERBO
O fato de ser de origem
humilde, pai sapateiro, mãe lavadeira, não seria argumento para Manoel José
de Almeida baixar o topete
para qualquer um. E isso era perceptível, só de observar o seu porte,
sua
imponência, sua coluna vertebral ereta. Não se curvava nunca, mesmo
tendo os
topetudos pela frente. E olha que foram vários em sua vida de menino, no
meio
de tantos adultos, donos da verdade.
Mas um episódio me chamou
muito a atenção. Éramos pequenos e meu pai juntava todos os filhos ao
seu redor
na cama de casal e começava a contar histórias. Falava com a mesma
desenvoltura
sobre Bahr, Bethoven,
Chopin, Voltaire, Chopenhauer, Freud, sobre a
Revolução Francesa, a Segunda Guerra Mundial. Eram momentos de muita
atenção,
pois o tempo era pouco para tanta curiosidade. Naquela época não existia
televisão, então, meu pai chegava do trabalho e reunia todos os filhos
na sala,
ao redor da “radiola”, para ouvir músicas
clássicas, de todas as vertentes. Os discos eram muito pesados e assim,
ele empilhava
as coleções ao lado do aparelho para facilitar a seleção, de acordo com
seus
critérios. Eram 78 rotações por minuto, assim, o disco tocava
rapidamente,
tendo que ser trocado a todo momento. Morávamos numa
casa, em Belo Horizonte, de dois pavimentos. Ele teve a idéia de colocar
um auto-falante nos nossos quartos,
que ficavam no segundo andar. Assim, dormíamos embalados pelas músicas
clássicas.
Mas os casos mais
gostosos eram realmente aqueles que diziam respeito à sua vida pessoal,
quando
criança, nas revoluções de 1930 e 1932. A curiosidade era
grande e, como as
idades variavam, ele procurava ser suficientemente
didático, para prender a atenção dos mais novos. Assim nossa infância
foi muito
rica, a despeito de não haver televisão, vídeos, computadores e até
mesmo os
incríveis celulares. E foi numa dessas que ele contou a história de
quando
atravessou a nado o Rio São Francisco, em frente a
cidade de Januária, um dos pontos mais largos daquele
que denominavam como o “rio da
unidade nacional”, por percorrer diversos Estados em seu percurso até o
mar.
Pois bem, atravessar o
rio São Francisco, para todo menino da cidade, era um desafio. Era mais
ou
menos como a sua primeira vez. Os mais velhos não davam maior
importância ao
feito, mas entre os garotos, era ponto de honra essa conquista. Passava,
de alguma forma, a ser incluído numa turma seleta
de garotos que conseguiam o feito. Realmente era uma grande façanha. Não
consigo imaginar quantos metros distam de uma margem a outra, mas a
força das
águas é o bastante para assustar qualquer um a pensar em
desafiar o Rio. E
lá se foi Nezinho. Era seu grande dia. A meninada já
sabia do seu desejo em romper aquela barreira. Já estava chegando a uma
idade,
12 anos, onde a grande maioria já havia conseguido conquistar aquele
feito. E
não era somente atravessar o rio. Tinha que voltar, pois a casa dele
ficava do
outro lado da margem esquerda e, não se admitia a qualquer um o uso de
uma
carona numa canoa, para superar o cansaço. E bota cansaço nisso. De
constituição física franzina, Nezinho, sabia que o desafio
teria alto custo. Naturalmente
que seus pais e até mesmo os irmãos não poderiam tomar conhecimento,
caso
contrario iria haver uma proibição, pois sabiam dos riscos daquela
travessia.
Muitos foram os que se afogaram naquela investida. E lá vai Manoel de
Almeida,
rumo à margem direita do São Francisco. Ele já conhecia, ou tinha
informações
acerca dos pontos perigosos e aqueles passíveis de optar por uma mudança
de
percurso. Chegar ao outro lado foi algo de espetacular, mas e agora?
Tinha que retornar e a
turma dos moleques estava lá para registrar a grande conquista do
companheiro. Não poderia descansar e teria que retornar imediatamente às
águas
daquele caudaloso rio, imediatamente. As braçadas eram regulares,
mantendo um ritmo
tal que possibilitasse enfrentar os últimos momentos, que eram os mais
delicados. Seu corpo já começava a não responder ao cansaço. A juventude
sempre
ajuda nesses momentos, mas... Para chegar à margem esquerda, no ponto
combinado
com os garotos, ele teria que saltar um pouco acima, mas o importante
seria a
técnica de singrar as águas de uma forma transversal. Sim, ele nadava
contra a
correnteza, melhor dizendo, quebrando assim, a velocidade das águas e
não
carregando seu franzino corpo para os pontos de maior profundidade do
rio. E o
cansaço estava vindo, e cada momento, mais intenso, fazendo seus frágeis
músculos se tornarem mais doloridos. Percebeu que uma canoa passava a
alguns
metros, mas não pensou em
pedir ajuda. As pessoas da canoa não se manifestavam,
observando apenas o garoto debater com aquele turbilhão de águas. Num
certo
momento, já exausto, percebeu uma moita de capim no meio do rio. Aquilo
era um
sinal de que havia uma coroa de areia, onde poderia descansar um pouco.
Esse
tipo de coroa era comum ocorrer, devido ao constante movimento das
águas,
formando e destruindo montes de areia, dentro do rio. Nadou como um
louco até
aquela esperança e, quando segura o arbusto, sente que não tem nenhum
apoio.
Nada havia para abrandar eu inícios de desespero. As pessoas da canoa
ainda o
observam, não demonstrando qualquer preocupação ou esboço de ajuda. E lá
vai Nezinho em direção àquela margem esquerda que é o seu
maior
desafio na vida. Sabia que aqueles metros finais iriam definir muita
coisa em sua vida. Muita
coisa estaria em jogo a partir daquele momento. Não poderia se entregar e
deixar o rio levá-lo. Com certeza sairia muito abaixo, onde poderia com
menor
desgaste, alcançar um barranco para subir. Mas e a turma? Isso ai sim, é
a
grande questão. Só sendo menino para entender essa fração de segundos
para uma
tomada de decisão. A cada braçada, Nezinho sente que
a margem está chegando e chegando. Faltando apenas alguns metros, eis
que um
dos ocupantes da canoa, estica o braço e oferece ajuda
ao garoto. Este olha pra o rosto do infeliz, fixa seus olhos e segue em
frente.
Com mais algumas braçadas, chega até a margem e tem um sorriso que
ilustraria a
maior conquista de todos os tempos no mundo. O barqueiro observa aquele
jeito
matreiro do garoto e diz: SUBERBO. Esse era o Nezinho,
menino de Januária, que atravessou a nado o Rio São
Francisco, num dos seus pontos mais largos. Ficou famoso, entre os
meninos, e
deu uma aula de vida àqueles que procuravam tirar proveito de sua
vitória. A
mão estendida, nem sempre é bem vinda.
CLÁUDIO ANTÔNIO DE
ALMEIDA
BRASÍLIA – AGOSTO
DE 2012
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