PRAIA
DE CARAPEBUS
A perda de um membro da família é sempre dolorosa,
principalmente, em se tratando de um cara tão legal. Sim, meu cunhado foi um
grande companheiro e amigo. Era até chamado de Jeremias. Ziraldo, uma vez
expondo seus desenhos em
Belo Horizonte, comentou comigo que o “Jeremias, o bom” era o
Paulão. Ele criou vários personagens, baseados no comportamento e caráter dos
seus companheiros de república em Belo Horizonte, quando fazia o curso de direito.
Todos sentiram muito. Meu pai me comentou uma vez, que lamentava muito, a
família não ter lutado mais.
Diante desse ambiente, meu tio Astolfo, cunhado de meu pai,
casado com a irmã dele, e uma das pessoas mais leais a ele, ofereceu sua casa,
na Praia de Carapebus, no Espírito Santo, para a família passar as
férias. Meu pai estava muito abalado, pois acompanhou de perto,
juntamente de minha mãe e minha irmã, toda a situação da morte do Paulão e
considerou que o passeio à praia, seria uma boa terapia para toda a família.
Para acomodar toda a família, meu pai sempre manteve um carro grande. Uma
Kombi, ou uma Rural Willys. Se falar nesses nomes para a garotada de hoje,
seria objeto de jacota. A estrada era terrível, perigosa mesmo, passando por
Venda Nova, até chegar à divisa com o Estado capixaba. Meu tio havia nos
prevenido que teríamos que chegar cedo na vila de Carapebus, onde ficava sua
casa, pois teríamos que fazer uma faxina, pois há alguns meses, ninguém tinha
estado lá. Saímos assim, de madrugada de Brasília, passando rapidamente por
Belo Horizonte, apenas para pegar a chave da casa com o Tio Astolfo.
Era uma Colônia de Férias da Polícia Militar de Minas
Gerais. Meu tio, como meu pai, era Coronel e, buscando reduzir um pouco o
complexo dos mineiros em não ter uma praia a tira-colo, construiu uma casa,
muito confortável naquela Colônia. Seis filhos era o suficientes para se fazer
uma boa limpeza. Antes, passamos, em Vitória, por um supermercado para suprir a
casa, pois iríamos encontrar a geladeira vazia e lá não existia nem uma
mercearia. À noite saímos para conhecer as instalações do Clube e acabamos
jantando no seu restaurante. O prédio tinha uma forma arredondada, parecendo a
cúpula da Casa Branca, nos “States”. Eram dois andares. A primeira vista, todos
estranham o tipo de construção, mas depois que ficamos sabendo que ali, era uma
tremenda jogativa, deu pra entender seus salões. Na época em que o jogo era
proibido no Brasil, durante o Governo Dutra, muitos foram os cassinos
clandestinos surgidos pelo interior do País. Havia ali perto, até um campo de
pouso, para aviões particulares. Mas tudo ficou na história e, com a proibição,
o jogo foi ficando cada vez mais difícil de se praticar no Brasil, e os
jogadores, mais pobres, foram para o Paraguai, e os mais abastados, para
Mônaco, Istoril, Lãs Vegas, etc.
No dia seguinte, antes das oito, quase todos já estavam de
pé. Meu pai já estava na varanda, como sempre, curtindo sua rede, e a brisa do
mar. A casa distava cerca de 150
metros da praia. Minha mãe, pra variar, já tinha deixado
o café da manhã colocado na mesa para os filhinhos. Todos marmanjos, a exceção
da Rita e do João. A praia era perigosa, mas tinha um lado, onde havia uma
península, local em que os velhos tomavam banho de “assento”, como diziam entre eles. A
água batia na canela, podendo adentrar ao mar, por vários metros, sem cobrir os
joelhos. Ali ficavam os amigos de meu pai. Todos coronéis. Era um papo
saudosista, que ia se repetindo até o último dia de férias. Minha mãe, já não
se sentia tão à vontade. Nunca a observei papeando com as esposas dos coronéis,
e assim, passava mais tempo em casa, fazendo almoço e lavando roupa, coisa que
ela jamais fazia, em
Belo Horizonte ou em Brasília. Não era chegada a ir a praia.
A vida de todos era uma verdadeira maravilha. Já imaginou?
Passar o dia todo na praia, comendo peixe, camarão, etc. Em outras encarnações
eu devo ter nascido na praia, pois sou alucinado por mariscos, crustáceos em
geral e todo tipo de peixe. Pela manhãs saiamos cedo para participar do
arrastão. Eram dezenas de pescadores que, lá pelas três ou quatro horas da
manhã, jogavam as redes em alto mar em busca dos cardumes. La pelas sete ou
oito da manhã, começavam a puxar a rede. Nesse processo, todos nós praianos,
turistas, participávamos. Era uma farra gostosa. Mas no final das contas, os
pescadores pegavam os peixes e colocavam nos balaios, para a venda. Na rede,
vinha de tudo, peixe espada, baiacu, cavalo marinho, conchas, estrelas do mar,
etc. Os pescadores nem ai pra essa caça, mas nós nos deliciávamos com isso,
pois, nós mineirões, jamais tínhamos visto aquelas coisas. Sempre passava em
nossa casa, um senhor forte, negro, de cabelos brancos, oferecendo peixes para
o meu pai. Ele dizia que era ele quem pescava e contava aventuras em alto mar,
aqueles papos de pescador. Meu pai acreditava piamente e comprava o peixe, por
um preço muito salgado. Um dia fomos ao mercado central de Vitória, e nos
encontramos com o “pescador”, amigo do meu pai. Ali era o mar dele. Era grande
o esforço que fazia para retirar o peixe da água. Chamava-se João do Peixe. E
sobrava sempre para a minha mãe fazer o pescado de acordo com o gosto do meu
pai, que gostava de um tempero caprichado. Mas o predomínio de mineiros nas
praias do Espírito Santo, era um fato. O sotaque era o mineirês mesmo. Até o
governador à época do Estado, era mineiro, de Ubá. Assim, sentíamos em casa,
literalmente. À noite, saíamos com os amigos em direção à zona boêmia do
lugarejo. Era freqüentada, basicamente por marinheiros, com aquelas tatuagens
mal concebidas nos braços e no peito. Tatuagem naquela época era coisa de
marinheiro. Um amigo nosso pedia o carro do padre emprestado e ia pra lá
também. Mas o padre desconhecia esse itinerário, lógico. O carro
era um Fusca de Cor de Abóbora, conhecido em toda a região. Imagino o que
pensavam, quando viam o carro naquele ambiente.
Mas a nossa paz veio a ter uma ruptura desagradável.
Dormíamos, com as janelas abertas, e até mesmo as portas destrancadas. Era um
clima descontraído de praia, sob todos os aspectos. Sem preocupação nenhuma com
a violência do mundo urbano. Numa madruga meio chuvosa, uma quadrilha desligou
as luzes da Colônia e invadiu várias residências. Entraram em nossa casa e
levaram vários aparelhos de som e objetos. Eu tinha chegado há poucos
dias de Manaus, onde adquiri muitos aparelhos. Toca-fita, gravador, máquina
fotográfica, televisão portátil, enfim, uma quantidade de coisas que àquela
época não eram tão disponíveis nos mercados das Capitais. Levamos tudo para
praia de Carapebus. Limparam tudo. Teve um ladrão, cara de pau, que chegou a
entrar no quarto dos meus pais e tirar seu dinheiro no bolso da calça. Minha
mãe acordou, viu o indivíduo, mas fingiu dormir. Tão logo o meliante deixou o
quarto, acordou meu pai e disse-lhe o que havia presenciado. Meu pai
levantou-se rapidamente, e foi até o quarto onde me encontrava, juntamente com
os irmãos homens e falou sobre o assalto. Não tínhamos arma. Imagine, uma
Colônia de Férias da Policia Militar de Minas Gerais, sendo assaltada, por
ladrões capixabas, e nenhum dos coronéis tinha sequer uma pequena beretinha. Eu
e meus irmãos pegamos uns cascos de cerveja e saímos correndo pela estrada que
leva até o vilarejo, para ver se conseguia encontrar os ladrões. Mas não deu em nada. Foi chato, mas nas
outras residências, foi bem mais desagradável. Minhas irmãs não chegaram a ser
molestadas, mas soube que em outras residências, chegaram mesmo a ameaçar os
casais, as mulheres e até as crianças. Criou-se um ambiente muito desagradável,
o que levou os coronéis a se reunirem e procurarem o Governador do Estado e o
Secretário de Segurança. Era muita petulância, invadir um Clube Militar. Mas,
parece que vingaram a honra dos “vitorinos” diante da invasão mineira nas
praias capixabas. Algumas famílias retornaram para Belo Horizonte e outras
permaneceram, mas daí em diante, sob uma forte apreensão. Alguns filhos dos
militares, mais revoltados, chegaram a pegar suspeitos que perambulavam pela
praia, como bode-espiatórios, dando-lhes o chamado corretivo. Meu pai ficou
muito revoltado com esses métodos e do ambiente gerado, pois sabia que aqueles
raivosos, eram filhos de seus companheiros de farda. Assim, comunicou o fato ao
meu tio, e que diante das circunstâncias, voltaríamos para Brasília.
Mas nosso vínculo com Carapebus já estava destinado.
Caminhando e meditando pelas praias próximas à Colônia de Férias, meu pai viu
uma casinha, a beira mar, branquinha e azul del rei, com uma placa de
“vende-se”. A chave estava com um vizinho próximo, que mostrou a casinha para
meu pai. Ele olhou, gostou e chegou em casa dizendo: Comprei uma casa aqui em
Carapebus, na beira do mar. Fomos até o local e ficamos encantados. Era
realmente uma beleza, um paraíso. Diziam que a casa já estava à venda há
tempos, mas não pintava ninguém que se interessasse, apesar da bela
localização. É que ali ocorreu um triste acidente com a família-proprietária. A
morte de uma criança por afogamento, em frente da casa. O mar ali era muito
perigoso, todos fugiam de lá. Aquela família residia em Vitória e usava a casa
para os finais de semana. Meu tio Astolfo, chegou no dia seguinte, juntamente
com o sobrinho inseparável, Zé Carneiro, casado, com a prima, minha saudosa Tia
Bela. E o Zé brincava: O Manoel nasceu .... pra lua... E a minha tia Maria,
irmã de meu pai, ingenuamente repetia. É, Manoel nasceu pra lua. A casa veio a
ser um reduto mineiro em terras do Espírito Santo. Praticamente, todos os
anos, fracionávamos as férias para curtir a praia de Carapebus, pois, todos
foram se casando e, já não existia mais espaço para todos. Várias foram as
vezes em que fui com minha família, onde passávamos quase o mês todo. Era o
nosso resort. O acesso à Colônia era difícil, pois, por capricho, creio,
mantinham uma estrada de terra, precaríssima. Com isso, a especulação
imobiliária foi, por décadas, postergada. A aldeia de pescadores se manteve.
Nossa praia ficava num hiato, entre o Porto de Tubarão, em Vitória, e Aracruz,
onde existia uma fábrica de celulose, que produzia odores terríveis, mas o
vento soprava, quase o ano todo, para o norte. Era um ponto estratégico, mas
creio que não houve interesse do Estado em ocupar a área.
E os anos se passaram, e meus pais e os seis irmãos,
freqüentavam, com suas famílias ou amigos e namorados aquela praia bendita. Com
o tempo, os netos de Manoel de Almeida e D. Márcia, passaram a assumir aquela
espaço, então com as janelas pintadas de verde. Ali foi palco de grandes
festas promovidas pelas várias gerações dos Almeidas. Mas já não havia mais o
arrastão, o João do Peixe, que vendia para o meu pai, aquele peixe pescado no
mercado, e que meu pai saboreava com prazer. Não mais existiam os coronéis, não
mais existia aquele ambiente de festa. E a casa começou a ficar sem
frequentadores, sofrendo os efeitos do vandalismo e de vários assaltos, o que
veio a desmotivar as idas àquele paraiso.
E agora, recebo uma ligação de meu irmão João, informando
que minha mãe o autorizara vender a casa de Carapebus, diante dessa situação e
que, conseguiu uma boa oferta. Estava João em Vitória e sacramentava a venda do
imóvel. Por um momento pensei nesses mais de quarenta anos ali vividos, desde
aquela visita de meu pai àquela casa, perdida em frente à praia. Durante esse
tempo, jamais houve um acidente, nas centenas de viagens que fizemos para
aquele Estado, a exceção de uma derrapada do carro da Rita. Jamais houve um
acidente na praia, no mar, com todos os descendentes de Manoel de Almeida. Mas
ficou na lembrança, os bons momentos vividos, e como foram bons. Espero que o
comprador tenha sido um capixaba, pois assim, reduzo um pouco a minha culpa
diante daquele bravo povo do Espírito Santo.
CLÁUDIO ANTÔNIO DE ALMEIDA
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