quarta-feira, 4 de abril de 2012

Depoimento de Cláudio Antônio de Almeida

Pediram-me para escrever alguma coisa no Blog do Centenário de Nascimento de meu pai, MANOEL DE ALMEIDA, mas constato agora, não ter entendido exatamente o espírito da coisa. Também foi a primeira vez que li e escrevi para um Blog. Acho que extrapolei. Pelo que vejo, o Blog tem que ser mais enxuto. Esse vai ser o último e, se possível, vou tentar ser bastante sintético, grande esforço, mas vou continuar escrevendo, pra mim mesmo, algumas coisas que guardei nesses meus já longos anos de vida e que chegou a hora de colocar pra fora.  Vamos lá, esse é o


FELIZ ANIVERSÁRIO.

Fazer aniversário, para homem ou para mulher, depois dos quarenta anos é uma lástima. Dizem que, depois que entramos nos ENTA, a coisa pega. Só acaba, quando chega nos NOVENTA e depois, vêm os cem anos, coisa que é pra poucos e, pelo que tenho visto, não vale muita coisa, só para os laboratórios de medicamentos geriátricos e fabricas de cadeiras de roda. Mas, irremediavelmente, sempre chega o seu dia de aniversário e você tem que agüentar os gracejos daquelas pessoas totalmente desprovidas de senso de humor, mas que se sentem na obrigação de dar aqueles toques desagradáveis, para que você tenha mais ódio dos anos que esta fazendo. Ah, como um dia desejei fazer dezesseis anos para assistir o filme: “Cavaleiros da Távola Redonda”. Puxa, Robert Taylor. Hoje, nem sei se existe o DVD. Passava no cine Metrópole, em Belo Horizonte. Hoje deve ser um espaço evangélico, como a maioria dos cinemas de lá.
E o aniversariante do dia era o meu pai, MANOEL JOSÉ DE ALMEIDA. Sim, e nem eram quarenta anos, mas SESSETA longos anos vividos. Para nós, de uma geração sem pressa, era uma eternidade. Lembro-me dos meus avós, como eram velhinhos. E quando vejo no verso das fotos deles, as anotações de que tinham menos de sessenta anos, me assusto. Incrível, mas é verdade. Eles eram velhos com quarenta anos. Meus tios me mandavam tomar a benção deles. Que coisa terrível. A gente tinha que beijar aquelas mãos, muitas vezes mal lavadas, mas em sinal de respeito. Mas que respeito terrível. Meus sobrinhos sempre me chamaram de Cláudio e meus filhos de você. Mas o senhor naquela época era imperativo, impositivo e irritante. A gente não discutia uma ordem, bastava somente um olhar e agente colocava o rabo entre as pernas e saia de fininho para o quarto. Hoje se eu for dar uma olhada para um neto, ele talvez dê uma piscada pra mim, pra retribuir o imaginado carinho. É, o tempo passou e muito rapidamente. Um amigo uma vez disse que deu uns tapas no filho porque ele estava no quintal e chovia. Gritou várias vezes para o menino sair do quintal e o menino nada. Foi lá e deu uns tabefes no guri. E este, meio sem entender nadica de nada, pergunta ao pai: o que é quintal?    
Mas o trauma do meu pai veio aos sessenta anos. O meu veio aos quarenta. E bateu pesado demais. Não sei, passou tudo o que havia de pior, impotência, incontinências diversas, insegurança, solidão, etc. Os psicólogos é que faturam alto nesses momentos. Surgem teorias de todas as formas e fica difícil adequar uma delas ao nosso perfil, mas tem que se enquadrar, nem que seja por fórceps. Eu estava separado há pouco tempo e imaginava, como todos os separados, que iria transar todas as mulheres do mundo. Mal sabíamos que, o tempo em que ficamos fora do mercado, a fila andou, e como andou, a passos muito largos, deixando-nos muito para trás, não conseguindo mais entender a linguagem das pessoas, os hábitos, os desejos, o jogo da paquera O mundo mudara, desde o meu casamento, e olha que não fiquei casado por muito tempo. Nesse momento, os amigos que não querem dar palpite, mas interferindo sempre, indicam um psicólogo pra gente. E nunca mais conseguimos nos desligar dessa turma. Quando Wood Alley dizia que fazia análise há 26 anos, eu achava um absurdo. E a minha geração toda passou por ela. São quarenta anos de psicanálise. Os entendidos, indicam pra gente começar devagarzinho, sem precipitação, fazendo uma biodança, depois vem a psicodança. Aí sofisticam e surge a análise transacional. É tudo de bom pra quem não entende de nada e com certeza, vai sair de lá sabendo menos ainda.  Vem a análise individual, mas logo em seguida, somos promovidos a uma análise de grupo. Lá conhecemos gente que está muito pior do que você e se diz de bem com a vida. Quase todos são separados e os que não o são, dificilmente saem dali casados. Aí vem seu terapeuta e indica um acupunturista, uma massagista dos pés ou um curso especial, desses que prometem tudo, transformar sua vida, enxergar-se por fora e, principalmente, mexer no seu ego e até no super-ego. Acho que nada melhor do que um decorador para isso, arrumar os interiores de minha vida. Mas muitos teimam em manter um psicólogo de plantão. Um dia vão acabar no Tibet e não conseguirão resolver seus próprios problemas. Quando vi na China um monge budista teclando um computador, pensei. – faliram todos os valores espirituais budistas. E tomara que minha psicóloga não leia isso. O homem e suas circunstâncias. Mas isso foi que gerou a expectativa em atingir os quarenta anos. Agora, imagino os sessenta anos de meu pai, que tormento terrível ele viveu.
Eu o via cabisbaixo, triste mesmo. E perguntei-lhe o que era. E ele falou-me como numa confidência que se faz na hora da morte e pra não contar pra ninguém: Amanhã faço 60 anos. A boca dele ficou tão cheia de anos que achei que era muito mais. Puxa, já pensou, mais de meio século. Antigamente os séculos demoravam muito mais do que os séculos de hoje. Outro dia era século vinte, agora já não é. O filho de meu sobrinho, de sete anos, de forma gostosa, perguntou-me se eu nasci no século passado. Revoltante, mas a gente vai se adaptando à ironia dessa geração. E olha que nossos filhos já passaram batidos. Os advirto, curta mesmo, passa rápido pra caramba. Você não vê o tempo passar. Nada pior do que já ver os netos, aí, impunemente, sem que você possa fazer nada. E eles lhe chamam de VOVÔ, em voz alta, perto das pessoas que a gente ainda imagina receber um olhar. Que ódio, mas é o tempo, e como é fatídico.
Sim, disse meu pai, amanhã faço sessenta anos. E lhe perguntei como sentia? Aquelas perguntas idiotas, que todo jornalista faz, no futebol, na novela, no teatro, na política, na vida. “Como você se sente com sessenta anos”. Vontade dar-lhe exatamente aquela resposta, mas temos que nos conter e dar aquela resposta hipocritamente, socialmente e eticamente plausível. Mas ele respondeu como 95% das pessoas responderiam. Bem, o tempo passou muito rápido. Disso temos certeza, mas quem responde, está imbuído de valores derrotistas, violentados, agredidos pela juventude que se renova a cada segundo e a gente tem a certeza de que,  daqui pra frente muitos ENTAS, já ficaram para trás. É, dá vontade ajudar de alguma forma. Não existem comprimidos, receitas que possam amainar esse estado de espírito, nenhum, nem os psicólogos, talvez os psiquiatras com uma boa dosagem de ansiolíticos e anti-depressivos. Só resta aquele tapinha nas costa, que representam o consolo ao derrotado. É melhor mesmo ficar calado, e se possível, para sempre, ao invés de dizer aquelas asneiras que só ouvimos daquelas pessoas treinadas nos grupos de salvamento, para evitar o desenlace fatal. Bonito, né?
Era o dia 23 de setembro. Meu pai acorda cedo, pega a Rural Willys, o carro da época, e vai para a fazenda, junto com seu amigo Pereirão, da cidade de Unaí, onde sempre fazia campanha eleitoral para o Coronel, e que, por estar aposentado, mudou-se para Brasília e fazia uns bicos no táxi. É a maior violência, tirar o homem do meio rural e colocá-lo no trânsito de qualquer Capital. Em troca do bem estar da família, muito estranho. Nem dez anos de terapia dariam jeito. Mas na falta dos filhos que não mais queriam acompanhar o sex, ou melhor, o sexagenário, MANOEL DE ALMEIDA, nas infindáveis viagens de fins de semana, fugindo das mesmices de Brasília, o velho Pereirão, sempre estava presente. Ele gostava muito de meu pai e sabia dos gostos dele. Lembrava-me de uma véspera de eleição em Unai, quando eu estava com ele percorrendo alguns Distritos, tentando conseguir alguns votinhos, para os já minguados votos que surgiam na cidade, após o poder econômico bater pesado na região. Quando me lembro que os primeiros motores de luz, nas cidades de Unaí e Paracatu, foram colocados por meu pai, além de escolas, pontes, balsas, bolsas de estudo, etc. MANOEL JOSÉ DE ALMEIDA, se elegia a base de muito trabalho e sacrifício, e eu sou prova inconteste disso. Um dia em Paracatu, estava passando o material de propaganda de meu pai às pessoas, quando uma moça vê sua foto e diz: Minha mãe só vota nesse homem. Que bom, disse eu, e você? Ela disse que votava no MDB, mas que a mãe gostava muito dele, pois havia dado a ela, aquela ingrata, uma bolsa de estudos, de sete anos. Coisas assim, desestimulam qualquer político – a ingratidão. Uma vez perguntei a meu pai, o por que dele não ter preparado nenhum filho para a política. E ele disse: A ingratidão, meu filho, sofri muita ingratidão e discriminação, por ter uma origem humilde. Não desejava isso para meus filhos. E continuei, por que então não preparou nenhum filho para substituí-lo na obra “caiomartiniana”. Ele parou, e com muita assertiva disse: ISSO É MISSÃO. Não é um desejo ou vaidade  de uma pessoa que o levaria a assumir um trabalho desses. É uma missão e poucos estão direcionados para tal. Eita, mas surgiu outra história dentro da história. Eu falava do Pereirão e fazíamos campanha política na cidade de Unai. Pois bem, quando chegou a noite, ele me levou para uma pensão para jantar. Era simples demais, sou muito nojento e presenciava atos que me incomodavam muito, principalmente na hora da jantar. Ele disse que iríamos dormir lá, pois o povo gostava de ver a gente convivendo com eles e coisa e tal. Hábitos de políticos demagogos. O banheiro era no fundo do corredor e o vaso ficava acima de uma fossa, onde eram visíveis uns bichinhos nadando naquela água imunda. Mas a causa era nobre e tinha que enfrentar aqueles preconceitos urbanoides. Não havia televisão, assim, fomos dormir logo em seguida. O travesseiro fedia, mas fedia demais. A roupa de cama não devia ser lavada há meses e, o cobertor estava até duro de sujeira. Tinha pernilongos atacando por todos os lado e, numa velocidade e ruído que faziam qualquer um desejar o sol nascer. Eu não sabia se colocava a cabeça debaixo do cobertor, onde o mal cheiro era insuportável, ou se colocava para fora, a mercê daqueles malditos insetos. Aquela noite deve ter demorado meses. O quarto tinha umas dez camas. E os roncos eram de uma orquestra que começa a afinar seus instrumentos, antes do concerto. E o bumbo era o mais potente de todos, somados às flautas, sim, pois tinha assobios e falantes noturnos.
Pois bem, lá se foi meu pai naquela empreitada de fuga de idade,  juntamente com o Pereirão. Mas com certeza o velho cabo-eleitoral iria mudar a feição de meu pai, contando casos e mentiras para melhorar o estado de espírito do velho guerreiro. Não era fácil, chegar impunemente aos sessenta anos. Alguma coisa tinha que acontecer. Naquele dia eu me preparava para ir a uma festa. Essa como outras tão desimportantes quanto tantas que foram extremamente importantes em certos momentos importantes de nossas vidas. É como aquele filme bom que você fica até as quatro da manhã assistindo e no dia seguinte não consegue lembrar do nome. Da festa eu não me lembro, mas a história dos sessenta anos do meu pai, nunca saiu da minha cabeça. E eu passei por esses sessenta e recordei muito aquela angústia paterna.. Felizmente, o meu trauma tinha sido aos quarenta. Mas foi sem emoção.
Já eram mais de 23:00 horas e eis que chegam, meu pai e o Pereirão, todos molhados, sujos, mas imundos mesmo de lama. Tudo podia ter acontecido, naquele desaniversário, mas que não fizesse tão mal assim ao meu pai. E então ele relata, pausadamente. “Estávamos bem próximos da fazenda, quando, de repente, sai de dentro da ponte, coberta de terra, num daqueles buracos que se abrem provocados pela erosão da chuva, um menino. Sim, um garoto. O carro vinha em velocidade razoável, quando a criança coloca a cabeça para fora, fazendo com que o velho Pereirão, não imaginasse outra alternativa, senão dar um golpe de direção para a direita, na velha Rural, do Coronel Almeida. E vai o veículo para dentro do riacho. O que aquele danado de garoto tava fazendo naquele lugar?  O carro caiu, meio de banda, com o lado direito, onde estava meu pai, para dentro dágua. O outro lado não chegou a ser tomado pela água barrenta, mas Pereirão, com a virada, caiu em cima do meu pai. Para se levantar, no desespero, colocou o pé no rosto do meu pai para forçar a saída da Rural. De cima da ponte, observava curioso o garoto, sem imaginar que fora o responsável por aquilo tudo. Já de fora do veículo, Pereirão puxa meu pai para cima e o traz até um barranco próximo à ponte. Estavam encharcados, sujos e para dizer a verdade, muito chateados, para não dizer exatamente a expressão que retrataria, literalmente, todo o sentimento de raiva de ambos. Passando um carro em direção a Brasília, pegam uma carona e deixam, malas e tudo mais dentro da Rural. Fico imaginando o que se passou na cabeça de meu pai, naquelas quase quatro horas de viagem de retorno, pensando no ocorrido e na explicação a ser dada a toda a família. Mas o drama da figura dos dois, tirava qualquer embalo de brincadeira ou sátira. Meu pai estava derrotado, vencido mesmo, pelos sessenta anos e pela trágica fuga das comemorações do anti-niver. Minha mãe logo preparou um café bem quente e o levou para um banho mais quente ainda e lhe disse: FELIZ ANIVERSÁRIO. Eu segui para minha festa, imaginando que muitas outras festas viriam, como vieram, mas não marcaram como a presença da marca de uma botina no rosto.

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