ONDE FOI PARAR O BANDOLIM?
Tinha que ter alguém na
família que tocasse algum instrumento. Mas parece coisa ruim, pois ninguém deu
pra música. O pai de meu pai, José Antônio de Almeida, era o homem dos sete
instrumentos. Além de tocar bem, ainda dava uma de maestro. Tenho comigo uma
flauta linda, transversal, toda desmontável, dada por ele, já no leito de
morte. Essa flauta suscitou muito ciúme, pelo que soube mais tarde, mas faz
parte das paixões de família. A caixa da flauta é de madeira, toda trabalhada, feita
à mão pelo Tio Antônio. Ele era irmão de minha vó.
Por quem meu pai tinha enorme afeto e confiava tarefas
difíceis, por saber que ele não era de arregar por
qualquer coisa.
Meu pai seguiu parte dos passos musicais paternos. Tocava
flauta e cavaquinho. Do lado de minha mãe, todos eram
regidos à música. Desde meu avô que tocava na banda da cidade, até as filhas.
Todas cantavam no coro orfeônico da cidade de Boa Esperança, onde viviam. Minha
tia, irmã de minha mãe, também tocava sete ou oito instrumentos. E ainda
cantava e namorava muito. E fazia música, mas faltavam os versos. Essa parte era minha mãe quem criava, nas
quermesses, nas festas juninas, na Semana Santa. Minha infância foi toda
passando semana santa lá. Era muito triste aquela cantoria de sexta feira da paixão,
mas tudo passava e virava festa.
Uma vez, um circo, do BiBi, passou pela cidade e apresentou o grande
espetáculo: “Nascimento, vida, paixão e morte de Jesús
Cristo”. Fomos todos para o circo e nos sentamos na frente, onde havia
uns camarotes, a poucos metros do picadeiro. Eu sempre levava comigo o meu
mico. É, aquele velho companheiro que ficava no meu bolso para todos os lugares
onde eu ia. Como na cidade tinha muitas árvores, em
suas fugas, era um pandemônio encontrá-lo. Eu saia pulando os muros dos
vizinhos atrás dele. O Pai Zé, meu tio querido, me acompanhava e
estimulava. Pois bem, no momento em que o Cristo penava na cruz, depois daquele
sofrimento todo, de açoites e agressões, parou por alguns instantes, próximo ao
lugar onde nos encontrávamos. Por uma razão qualquer, o mico saiu do meu bolso
e pulou na cruz. Foi o caos. Subi no picadeiro pra pegar o mico que pulava para
todo lado, deixando o pessoal do circo desorientado. Minha tia Flor, aquela tia
especial, também subiu no palco para ajudar-me na caça ao mico. E o danado do animal pulava da cabeça do Cristo para a cruz e da cruz para cima dos soldados
fantasiados de romanos, que o açoitavam. Aquele movimento fez com que tudo se
transformasse. De um espetáculo triste e de muito sofrimento, virou uma comédia.
Para mim, uma tragi-comédia. O povo ria e curtia a
minha caça ao mico. Não precisa dizer que o espetáculo acabou. No dia seguinte,
lá foi o BiBi na casa dos
meus avós conversar com meus pais. Disse que teve um prejuízo muito grande, que
foi prejudicado e coisa e tal e queria uma indenização. Como era conversa de
adulto, eu não me meti, pois meu assunto era só a integridade do meu mico.
Assim, não sei no que deu, mas a peça não merecia nenhuma indenização, era muito
ruim mesmo. Acho que meu mico foi um coadjuvante importante para popularizar o
circo. E até hoje essa história é lembrada na cidade. Afinal era fazer graça é
o que o circo se propunha. Mas quase me esqueço do Bandolim.
O tempo passou e eu, já
adulto e fazendo as coisas de adulto, lembrei-me um dia que meu pai tocara bandolim
quando jovem. Era aniversário dele, assim, nada melhor do que dar-lhe o instrumento de presente. Fui numa loja
em Brasília, chamada Bi.Ba.Bô,
veja que nome, e comprei. Era lindo. À noite levei-o para meu pai. Ele ficou
extremamente feliz. Disse que já não tinha mais aquela mobilidade nas mãos e
nos dedos, mas mesmo assim, começou a dedilhar aquela quantidade de cordas
duplas como se tivesse tocado pela última vez, no dia anterior. Foi uma festa.
Acertar um presente assim, não é todo dia. E o fiz feliz.
O tempo passou e meu pai,
já com a saúde bastante debilitada, encostou o bandolim em algum canto,
passando, efetivamente, a ser passado.
Quando nasceu minha filha
caçula, Giovanna, meu pai se encantou com ela. Ela era realmente uma bebê muito bonito, clarinha, loira e muito sorridente.
Era feliz. Meu pai sempre foi meio espiritualista. Não sei se existe meio espiritualista, mas
ele era bem chegado a esse negócio de reencarnação. Eu já preferia curtir os
candomblés na Bahia. Mas nesses encontros de meu pai com o mundo espiritual,
ele foi informado de que a Giovanna era reencarnação da Marcela, filha de seu
irmão, João de
Almeida. Era igualmente uma bela criança, lembro-me bem dela. Mas o destino a
levou, acometida por um câncer no cérebro. Seus últimos dias foram dolorosos e
não nos permitiam visitá-la no hospital, tal era seu
estado. Sei que foi muito sofrimento para ela e toda a família. Que eu me
lembre, foi o único falecimento de um primo ou sobrinho, em toda a minha
infância e juventude. Até pra receber a morte, a gente tem que se habituar. E
isso não deve ser boa coisa. Mas Giovanna cresceu e sempre que a levava a Belo Horizonte, meu pai demonstrava uma atenção especial
por ela. Ela era muito carinhosa com ele, dançava pra ele, cantava cantigas,
etc. Devia ter seus três anos.
Meu pai, já não mais político, residindo em Belo
Horizonte, passou a ter uma vida de rotina, sem muitas emoções. Já não mais
viajava e limitou seu universo ao mundo das novelas. E que, por sinal, ele
demonstrava gostar. Também não havia outra alternativa. Na época eu cursava
direito e, achando que era uma fórmula de preencher o tempo intelectual de meus
pais, passei a pedir que eles fizessem os meus trabalhos acadêmicos. E foram vários. Eles pesquisavam em
biblioteca, estudavam leis, etc. Fizeram trabalhos excelentes. Adoraram a
idéia. Muita inteligência ociosa. Naquela época não havia essa mamata da
internet. Havia pesquisa mesmo, profunda e fundamentada. Assim, posso dizer que
parte do meu diploma de advogado, devo a eles. Vou
lhes atribuir a parte de Família e fico com a Penal.
Numa de minha idas a Belo Horizonte, meu pai disse que gostaria de
ver a Giovanna. Ela morava com a mãe e era complicado sair de Brasília, mas a
levei. Foram, aproximadamente, duas semanas. Minha mãe dizia ao telefone que
meu pai estava adorando a presença da netinha. Ele já não suportava a
quantidade de remédios que tomava o dia todo. Seu estômago repelia alimentos.
Mas Giovanna conseguia dar-lhe os comprimidos na boca. Era preciso e minha mãe
sabia que ali estava sua vida. De acordo com o relato de minha mãe, um dia, ela
dançava para ele na sala e cantarolava músicas infantis. Meu pai se deliciava.
Pegou-a pela mão e foi caminhando até o quarto do casal. Lá, tirou de dentro do
guarda roupa, uma fronha contendo algo de muito especial. Era o bandolim. Era
a esperança de ter um neto músico, pois a primeira geração passou em branco e a
segunda, idem, a exceção de uma neta que tocava viola. Com muita dificuldade,
ele tocava para ela, algumas músicas de sua juventude, no instrumento. Os dias
fluíam e meu pai voltava à infância. Eram duas crianças. Uma tocando o
bandolim, outra cantarolava. E minha mãe
observava à distância o reencontro do Bandolim. O encontro de gerações.
Prezado Cláudio Antônio, apreciei e muito ler seus depoimentos sobre o seu saudoso pai, o deputado Manoel José de Almeida. Sou natural de Buritis, noroeste de Minas. Estudei em Januária e morei 40 anos em Brasília. Conheci pessoalmente o deputado Manoel de Almeida, tendo acompanhado a trajetória iluminada do ilustre militar e político. Grande abraço.
ResponderExcluirOnofre Ferreira do Prado
Belo Horizonte, 2 de fevereiro de 2013