sexta-feira, 23 de março de 2012

Depoimento de Cláudio Antônio de Almeida

DEU BODE !!!

Falar em Manoel José de Almeida, normalmente é papo bom. Tem também as “cositas mas tristes”, coisas da política, mas essas eu vou reservar para outra oportunidade. Falar de coisa engraçada é bom e esse papo do BODE, quase levou a vida de meu pai. Essa foi ele mesmo quem me contou.
Eu já disse que ele adorava avião. As vezes os pilotos deixavam que ele segurasse o macho do avião e conduzisse a aeronave por algumas horas, corrigindo somente as mudanças de traçado. E nos finais de semana, ninguém segurava o Coronel em Brasília ou mesmo em Belo Horizonte. Viajava e viajava muito, havia muito desejo em permanecer no ar, eu imaginava. É bom se distanciar dos problemas, nem que seja por algumas horas. E seu companheiro, como piloto, por muitos anos foi o Lourival. Um homem alto, meio grisalho, mulato, arredio, de pouco papo. Mas no avião, quem falava era só o Coronel e o Lourival ouvia, sem fazer qualquer comentário. Não me parecia ser um piloto seguro, mas, na média, era melhor do que, a grande maioria dos que viajavam com meu pai. Lembro-me uma vez, indo para uma cidade, próxima a Governador Valadares, e o campo de pouso era cercado, de ambos os lados, por postes de madeira e arame farpado. Era uma grande festa na cidade e meu pai tinha assumido o compromisso de lá estar. O piloto sobrevoou o local e disse a meu pai: nesse campo eu não desço. É muito perigoso, mande o Prefeito tirar essa cerca dali. E seguimos para Governador Valadares. De lá, meu pai ligou para o Prefeito daquela cidadezinha, informando da opinião do piloto. Impossível tirar, vários aviões já pousaram aqui, sem problemas, disse o Prefeito. Era quase um quilometro de cerca para satisfazer os desejos do sr. Lourival. Mas ele era cordato e meu pai determinou: vamos voltar lá e descer. Eu sentado no banco de trás do avião, apenas acompanhava aquela insegurança do homem. Mas, já de cima da cidade, Lourival deu algumas voltas em cima do campo e, deve ter pensado – seja o que Deus quiser. E fomos nós. Era um cercado completo, para evitar a entrada de gado na pista. Assim, na cabeceira tinha cerca e arame, bem como dos lados. E descemos, quase raspando nos postes, mas pousamos. O homem suava de molhar toda a roupa. Meu pai não deu maior importância ao fato e seguiu para o seu compromisso político, mas senti que o Lourival estava mal e que seria um problema na volta. E assim ocorreu. Meu pai teve que pedir a um piloto da cidade que levasse o avião até Governador Valadares. Numa outra vez, em Pirapora, um rapaz ao pular da ponte do Rio São Francisco, bateu com a cabeça numa pedra.  O pai do rapaz, que fazia oposição a meu pai na cidade, veio ao hotel pedir para emprestar o avião e levar o acidentado a Belo Horizonte. Meu pai não pestanejou e pediu a Lourival para ir, e, se possível, voltar no mesmo dia, pois ele tinha uma agenda apertada de viagens no norte de Minas. E não é que na volta o piloto se perdeu. Mesmo, se enrolou e foi para lugares que nem posso imaginar. Eu acompanhava a angústia de meu pai, pois ele já se informara de que o avião saíra no dia anterior da Capital mineira e ainda não chegara a Pirapora, a no máximo, duas horas de viagem, dando umas erradas. Mas, um dia depois, eis que aparece o avião e o velho piloto. Era fácil viajar ao lado de meu pai, pois ele nem precisava ver as cartas náuticas, pois conhecia toda a topografia do Estado, bacias hidrográficas, montanhas, etc. E orientava com desenvoltura todos os pilotos. Alguns até, a meu ver, acreditavam demais. No norte de Minas comentavam que a grande maioria das estradas saía da cabeça de meu pai. Pois, ele pegava o tratorista, de apelido, Grilo, e sobrevoava a região. O Coronel, como topógrafo,  indicava por onde deveria passar a estrada. Normalmente ele acertava, a exceção de uma vez em que a estrada bateu numa cachoeira, mas ninguém é perfeito, né?
E o avião carregava de tudo. Tudo mesmo. Desde saco de arroz, feijão, litros de leite, galinhas vivas, cachos de banana, etc. Quando passava pela fazenda, fazia o possível para encher o avião de tudo o que fosse possível, para agradar a D. Márcia, que sempre reclamava, que tudo vai pra fazenda, mas nada volta. E ela tinha razão, pois, no natal tinha que comprar pernil, peru, etc., e na fazenda existia criações de porcos, carneiros, cavalos e gado bovino. E numa dessas, lembrou meu pai que havia prometido a um amigo, de uma propriedade próxima dali, um reprodutor de carneiro. Sim, um BODE velho. Recomendou ao administrador da fazenda, não sei se seria exatamente esse o nome da função daquela figura, pois não tinha noção de nada que ocorria dentro da propriedade. E os amigos de meu pai alertavam - cuidado com esse cara. Ta lhe furtando. Uma vez ele disse a meu pai que a onça havia comido vinte ovelhas. Engraçado que não deixou nenhuma carcaça dos animais como prova do crime do felino. Mas o Manoel de Almeida foi sempre um crédulo, sempre confiou nas pessoas. E dizia, não creio, é um homem bom. Mas pediu ao gerente para pegar o carneiro e amarrar bem as pernas do bicho com tiras de couro, pois iria levá-lo de avião. O Lourival olhava de lado e resmungava, sem que meu pai pudesse perceber o que dizia, mas a insatisfação era total naquele transporte inédito. Pois bem, amarrado o animal, a tarefa consistia em colocá-lo na parte traseira do teco-teco. Recolhia o banco e encaixava o leporino, que era muito grande, atrás dos bancos dianteiros. Precisou de alguns homens para carregar o bicho até o avião, e introduzi-lo no cubículo. A expectativa de todos era muito grande, pois um passageiro daqueles, ninguém havia presenciado na história da aviação. Mas lá estava o BODE, que berrava escandalosamente para toda a região presenciar a sua despedida da propriedade. Lourival já se encontrava dentro do avião e meu pai dava as últimas instruções ao “administrador da empresa”. Quando a gente chegava na fazenda, o cara gritava tanto, que qualquer um podia imaginar que, se continuasse assim, ficaria rouco em pouco tempo. Era seu método de demonstrar presença, competência, etc. Mas, bastava circular pela fazenda para constatar que aquilo tudo era uma grande encenação. Mas meu pai confiava nele, e muito.
O motor do avião já estava ligado e adentrou o Coronel no pássaro voador, com os berros do bode misturado ao barulho do motor da aeronave. Era uma festa de rock. O campo de pouso era relativamente pequeno, mas o bastante para levantar vôo com três pessoas, em condições normais. Mas ali estava uma carga diferente das anteriormente carregadas. O bicho gritava, e muito. Não sei a distância da fazenda onde meu pai deixaria o animal, mas quinze minutos sob aqueles ruídos, já eram insuportáveis. E lá se foi o Lourival, embalando em direção pista acima, com destino previamente definido. Percorreu cerca de duzentos metros e o animal, imenso, nervoso e desorientado diante daquela experiência inédita de vôo e do barulho do avião, conseguiu se desvencilhar das amarras nas pernas e começou a espernear, dando coices para todos os lados. Marradas também não faltaram em direção aos assentos dianteiros. E a pista já estava chegando ao final e Lourival continuava célere, tentando se desfazer o mais rápido daquela carga indesejável. E o animal estava enlouquecido, já tendo destruído o assento traseiro, as laterais do avião e provocando uivos cada vez mais estranhos. O bicho tava possuído. A menos de cem metros do final da pista, meu pai dá um grito: Pare o avião.  Mas como, dizia Lourival. PARE, gritava meu pai desesperado com a perspectiva de ter aquele animal em pleno vôo, provocando o imponderável. Sim, porque ele a cada momento se mostrava mais nervoso. E os dois arregalavam os olhos. Imagine lá no alto, se o bicho salta sobre meu pai e o piloto. As portas traseiras do avião eram frágeis e não suportariam aqueles coices violentos que estava recebendo. Acabariam cedendo. No desespero, meu pai diz: Dê um cavalo de pau. (cavalo de pau para os leigos, consiste em frear uma das rodas dianteiras do avião, fazendo-o rodar e isso, só se faz em situações emergenciais). E assim foi feito, surpreendentemente, com maestria. O piloto desacelerou completamente o avião, que rodou algumas vezes sobre o eixo da roda presa, até parar completamente. Meu pai saltou e abriu a porta traseira do avião, vendo o infeliz animal saltar e nunca mais ser visto em uma área superior a cinqüenta quilômetros. E olha que a propriedade era cercada, em grande parte, por rios. A partir daí, Lourival ficou até mais claro. O caso virou lenda na região. O Bode que voa. E a superstição cresceu quando diziam que nem era um bode, mas um cavalo alado que o Coronel transportava.

CLÁUDIO ANTÔNIO DE ALMEIDA 

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