sexta-feira, 9 de março de 2012

Depoimento de Cláudio Antônio de Almeida



JOGO DE DAMAS


Mais um natal sem presentes. O reflexo era direto em minha casa. Todos os anos em que não havia recursos para comprar presentes para os meninos da “Caio Martins”, nós em casa, também ficávamos sem receber a dádiva de Noel. Os filhos de Manoel e Márcia eram um pouco, meninos caiomartinianos. Todos os finais de semana passávamos lá; era nossa rotina. Durante a semana, minha mãe ainda lecionava música e lá estava eu, durante a semana também. Eu sempre acompanhava minha mãe, pois, se ficasse em casa, com certeza iria brigar com os irmãos e, pra variar isso era uma constante. Morávamos em uma casa, apesar de grande, ficava pequena para suportar a energia de seis filhos. Hoje, me assusto quanto visito aquela mesma casa, e lembro que, inicialmente eram três quartos. Um dos meus pais, e os outros, divididos entre os homens e as mulheres. Até que minha irmã mais velha ficou mocinha e requereu um espaço maior para suas vaidades e veleidades. Mas eu continuava menino, apesar da diferença cronológica ser de apenas um ano. Mas ela levava uma vantagem enorme, pois, além de ser a mais velha, era vista por meu pai, com olhos muito especiais. Fazíamos aniversário, praticamente no mesmo dia, ela 30 e eu 31 de julho. No dia da comemoração dos aniversários, eu sempre tive a impressão de que não avisavam que também era o meu aniversário. E dançava no presente. Mas o caso aqui é o presente de Natal. Este sim, é o objeto dessa conversa.
Pois bem, não haveria presente de natal. Então, não tem objeto. Ficou estabelecido, mas haveria uma comemoração, pelo menos isso. Aquela coisa chata de ir à missa e ouvir aquela história contada todos os anos sobre o nascimento do menino Deus, já tinha sido dita. Mas eu ganhei do pai de um amigo da rua, um jogo de damas. Fiquei alucinado. Não tinha nada de especial e as pedras eram de matéria plástica. Mas pra mim, um sem presente, era lindo e era o meu jogo de damas.
Como todos os finais de semana, seguimos para a “Caio Martins”. No mesmo carro ia com a gente, o Padre José, gordo e simpático, que sempre ganhava umas galinhas das mulheres da região e as levava no carro, provocando aquele odor terrível. Mas ninguém reclamava. Apenas, o motorista, Paulo, que tinha que lavar o veículo. Mas o Dr. Maciel, que dava consultas e também aula de ciências no Curso Normal, também levava suas galinhas. Era um agrado, uma forma de pagamento, que ele jamais recusava. O Dr. Hilo, dentista, fumava um cigarrinho de palha, que apagava a cada minuto. E ele sempre tentava falar com o cigarro na boca, tornando difícil entender o que ele pretendia dizer. E o cheirinho da guimba era terrível. As vezes não tinha mesmo nada a dizer, mas era um homenzinho interessante, aliás, engraçado. Baixinho, já maduro, mas solteirão. Homem que mora com a mãe depois dos quarenta anos tem coisa, diziam e era o caso dele. Mas creio que ele veio a se casar. Ele implicava comigo, pois eu andava sempre com um mico no bolso. Mico estrela mesmo. Um dia levei o mico no consultório dele, em Belo Horizonte, para tratar uma cárie. Ele achava que era brincadeira, quando tirei o mico do bolso, pulou assustado, pra não dizer apavorado. Mas era apenas uma cárie, eu dizia, sem conseguir entender a recusa dele. Adultos ...
Levei comigo o meu jogo de damas. Chegava a limpar peça por peça, tal era o meu encantamento com o joguinho. Chegamos na Escola e fui direto para um dos lares, onde tinha meninos que regulavam com a minha idade – dez, doze anos. Ensinei pra eles algumas regras do jogo e passamos praticamente o dia todo jogando. A turma ia se revezando, e havia até torcida. Sério, tinha alguns que já vislumbravam duas a três jogadas na frente. Eram meus amigos. Os meninos me ensinaram a fazer botões, com matéria plástica. Botões para futebol de mesa. A gente amassava as tampinhas de refrigerante e colocava os pedaços de plásticos dentro. Fazia um fogo e o plástico derretia e ficava no formato de botão. Era meio rústico, mas até sofisticavam, colocando um plástico transparente por baixo e uma foto do jogador preferido. Na época, os principais times mineiros, eram Atlético e América, e ainda acredito que o são. Vivíamos completamente soltos na Escola. Tinha uma represa, onde a meninada nadava. Lembro-me de uma professora de artesanato, que gostava muito dos meus trabalhos. E eu circulava por todos os cantos da Escola. Nossa empregada, D. Maria Pinto, me procurava por todos os lares, para saber se eu tinha almoçado ou lanchado. O almoço era no próprio lar. Lá tinha um casal, e seus filhos também viviam junto aos demais meninos. Eram 23. Não sei o porque deste número. Mas tinha uma base de três a quatro por quarto. Não era muito diferente da minha casa. Deixei o jogo com os garotos e fui para a residência onde meus pais passavam o fim de semana. Era uma casa pequena, mas todos se acomodavam bem. Na frente tinha um bosque enorme, onde os garotos praticavam o escotismo. Ali também faziam churrasco e, me lembro, tinha um criatórios de coelhos e codornas.
Chega a hora de ir embora. Todo mundo esperando o Padre José acordar da sesta. E lá vem ele com suas galinhas dentro de um saco. Dr. Maciel, já bem velhinho, também trazia seus penados. E o Paulo, só olhava aquela carga extra entrando no carro. Era um carro muito grande, não me lembro a marca, mas era enorme. Tudo na nossa infância tinha uma dimensão muito maior do que viemos a constatar na idade adulta. Era o ângulo do olhar. A meninada me acompanhava e devolvia o meu jogo de damas. Meu pai sempre conversava com os meninos. Mas dessa vez estava conversando com muitos adultos. Algo estava acontecendo, mas nós nunca éramos informados dos problemas que afligiam os adultos. Quando os adultos ficam sérios, tem coisa ruim no pedaço. Minha mãe arranjava nossas roupas nas malas. Era muita roupa. Também eram muitos filhos. Não existia máquina de lavar. E D. Maria reclamava muito da quantidade de roupa suja. Finalmente, todos dentro do carro.
Eu me demoro um pouco, despedindo dos garotos e levando para o carro o meu jogo de damas. Meu pai observa aqueles movimentos e me chama para fora do carro. Cláudio, soube que você encantou a garotada com esse seu jogo de damas. Foi comentário principal do chefe-de-lar, de nome Lara. Um homem alto, muito claro, com os cabelos lisos e aloirados, de voz mansa e educado. Era militar. A garotada o respeitava muito. Mas não tinha idéia do que viria de meu pai, além desse comentário. Mas tinha muita coisa pela frente. No meio daquela meninada toda, meu pai pega o meu jogo de damas e diz: Meu filho, este não é um jogo para uma só pessoa, mas para muitas. Você não gostaria de dar esse jogo para os meninos? Puxa, era o meu jogo, o meu único presente de natal. Com o jogo eu conseguia me sentir o dono da bola. A meninada me via de forma diferente. Sei lá, tinha a senha do esconderijo, algo assim. Eu olhava para o jogo, olhava para os olhos das crianças e retornava o olhar ao meu pai. Sentia que, no carro, todos aguardavam a minha decisão. O que o Padre José estaria pensando? E se eu negasse? Creio que apenas D. Maria ficaria do meu lado, pois sempre foi minha cúmplice. Preta velha porreta, filha de negro com índio, bugre. Brava, mas do meu lado. Um silêncio se instalou entre aqueles olhares. Os olhos dos meninos brilhavam. Não era tirar a bala da criança, era muito mais. Era o meu bicho de estimação. Algo de muito especial. Mas o olhar de cada um mexia comigo e como mexia. Estiquei os braços e entreguei o jogo para um amigo especial, que tinha me dado um botão, feito de chifre de boi, e seria o meu beque central. A meninada comemorava. E eu? Entrei no carro enquanto todos conversavam sobre todos os assuntos, menos sobre aquela doação. Segui em silêncio até Belo Horizonte. Acariciava o mico, meu companheiro. Chegando em casa, meu pai entra no meu quarto e diz. Um dia você vai entender o tamanho da sua atitude. Realmente, hoje tenho essa dimensão. O educador atua em todos os momentos. E eu vivenciei um desses. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário