JOGO DE DAMAS
Mais um natal sem
presentes. O reflexo era direto em minha casa. Todos os
anos em que não havia
recursos para comprar presentes para os meninos da “Caio Martins”,
nós em casa, também ficávamos sem receber a dádiva de Noel. Os filhos de
Manoel e Márcia
eram um pouco, meninos caiomartinianos. Todos os
finais de semana passávamos lá; era nossa rotina.
Durante a semana, minha mãe ainda lecionava música e lá estava eu,
durante a
semana também. Eu sempre acompanhava minha mãe, pois, se ficasse em
casa, com
certeza iria brigar com os irmãos e, pra variar isso era uma constante.
Morávamos em uma casa, apesar de grande, ficava pequena para suportar a
energia
de seis filhos. Hoje, me assusto quanto visito aquela mesma casa, e
lembro que,
inicialmente eram três quartos. Um dos meus pais, e os outros, divididos
entre
os homens e as mulheres. Até que minha irmã mais velha ficou mocinha e
requereu
um espaço maior para suas vaidades e veleidades. Mas eu continuava
menino,
apesar da diferença cronológica ser de apenas um ano. Mas ela levava uma
vantagem enorme, pois, além de ser a mais velha, era vista por meu pai,
com
olhos muito especiais. Fazíamos aniversário, praticamente no mesmo dia,
ela 30
e eu 31 de julho. No dia da comemoração dos aniversários, eu sempre tive
a
impressão de que não avisavam que também era o meu aniversário. E
dançava no
presente. Mas o caso aqui é o presente de Natal. Este sim, é o objeto
dessa
conversa.
Pois bem, não haveria
presente de natal. Então, não tem objeto. Ficou estabelecido, mas
haveria uma
comemoração, pelo menos isso. Aquela coisa chata de ir à missa e ouvir
aquela
história contada todos os anos sobre o nascimento do menino Deus, já
tinha sido
dita. Mas eu ganhei do pai de um amigo da rua, um jogo de damas. Fiquei
alucinado. Não tinha nada de especial e as pedras eram de matéria
plástica. Mas
pra mim, um sem presente, era lindo e era o meu jogo de damas.
Como todos os finais de
semana, seguimos para a “Caio Martins”. No mesmo carro ia com a
gente, o Padre José, gordo e simpático, que sempre ganhava umas galinhas
das
mulheres da região e as levava no carro, provocando aquele odor
terrível. Mas
ninguém reclamava. Apenas, o motorista, Paulo, que tinha que lavar o
veículo.
Mas o Dr. Maciel, que dava consultas e também aula de ciências no Curso
Normal,
também levava suas galinhas. Era um agrado, uma forma de pagamento, que
ele
jamais recusava. O Dr. Hilo, dentista, fumava um cigarrinho de palha,
que
apagava a cada minuto. E ele sempre tentava falar com o cigarro na boca,
tornando difícil entender o que ele pretendia dizer. E o cheirinho da guimba
era terrível. As vezes não
tinha mesmo nada a dizer, mas era um homenzinho interessante, aliás,
engraçado.
Baixinho, já maduro, mas solteirão. Homem que mora com a mãe depois dos
quarenta anos tem coisa, diziam e era o caso dele. Mas creio que ele
veio a se
casar. Ele implicava comigo, pois eu andava sempre com um mico no bolso.
Mico
estrela mesmo. Um dia levei o mico no consultório dele, em Belo
Horizonte, para
tratar uma cárie. Ele achava que era brincadeira, quando tirei o mico do
bolso,
pulou assustado, pra não dizer apavorado. Mas era apenas uma cárie, eu
dizia,
sem conseguir entender a recusa dele. Adultos ...
Levei comigo o meu jogo
de damas. Chegava a limpar peça por peça, tal era o meu encantamento com
o
joguinho. Chegamos na Escola e fui direto para um dos
lares, onde tinha meninos que regulavam com a minha idade – dez, doze
anos. Ensinei pra eles algumas regras do jogo e passamos praticamente o
dia
todo jogando. A turma ia se revezando, e havia até torcida.
Sério, tinha alguns que já vislumbravam duas a três jogadas na frente.
Eram
meus amigos. Os meninos me ensinaram a fazer botões, com matéria
plástica. Botões
para futebol de mesa. A gente amassava as tampinhas de refrigerante e
colocava
os pedaços de plásticos dentro. Fazia um fogo e o plástico derretia e
ficava no
formato de botão. Era meio rústico, mas até sofisticavam, colocando um
plástico
transparente por baixo e uma foto do jogador preferido. Na época, os
principais
times mineiros, eram Atlético e América, e ainda
acredito que o são. Vivíamos completamente soltos na Escola. Tinha uma
represa,
onde a meninada nadava. Lembro-me de uma professora de artesanato, que
gostava
muito dos meus trabalhos. E eu circulava por todos os cantos da Escola.
Nossa
empregada, D. Maria Pinto,
me procurava por todos os lares, para saber se eu tinha almoçado ou
lanchado. O
almoço era no próprio lar. Lá tinha um casal, e seus filhos também
viviam junto
aos demais meninos. Eram 23. Não sei o porque deste
número. Mas tinha uma base de três a quatro por quarto. Não era muito
diferente
da minha casa. Deixei o jogo com os garotos e fui para a residência onde
meus
pais passavam o fim de semana. Era uma casa pequena, mas todos se
acomodavam
bem. Na frente tinha um bosque enorme, onde os garotos praticavam o
escotismo.
Ali também faziam churrasco e, me lembro, tinha um criatórios
de coelhos e codornas.
Chega a
hora de ir embora. Todo mundo esperando o Padre José acordar da sesta. E
lá vem
ele com suas galinhas dentro de um saco. Dr. Maciel, já bem velhinho,
também
trazia seus penados. E o Paulo, só olhava aquela carga extra
entrando no carro. Era um carro muito grande, não me lembro a
marca, mas
era enorme. Tudo na nossa infância tinha uma dimensão muito maior do que
viemos
a constatar na idade adulta. Era o ângulo do olhar. A meninada me
acompanhava e
devolvia o meu jogo de damas. Meu pai sempre conversava com os meninos.
Mas
dessa vez estava conversando com muitos adultos. Algo estava
acontecendo, mas
nós nunca éramos informados dos problemas que afligiam os adultos.
Quando os
adultos ficam sérios, tem coisa ruim no pedaço. Minha mãe arranjava
nossas
roupas nas malas. Era muita roupa. Também eram muitos filhos. Não
existia
máquina de lavar. E D. Maria reclamava muito da quantidade de roupa
suja.
Finalmente, todos dentro do carro.
Eu me demoro um pouco,
despedindo dos garotos e levando para o carro o meu jogo de damas. Meu
pai
observa aqueles movimentos e me chama para fora do carro. Cláudio,
soube que você encantou a garotada com esse seu jogo de
damas. Foi comentário principal do chefe-de-lar, de
nome Lara. Um homem alto, muito claro, com os cabelos lisos e
aloirados, de voz mansa e educado. Era militar. A garotada o
respeitava
muito. Mas não tinha idéia do que viria de meu pai, além desse
comentário. Mas
tinha muita coisa pela frente. No meio daquela meninada toda, meu pai
pega o
meu jogo de damas e diz: Meu filho, este não é um jogo para uma só
pessoa, mas
para muitas. Você não gostaria de dar esse jogo para os meninos? Puxa,
era o
meu jogo, o meu único presente de natal. Com o jogo eu conseguia me
sentir o
dono da bola. A meninada me via de forma diferente. Sei lá, tinha a
senha do
esconderijo, algo assim. Eu olhava para o jogo, olhava para os olhos das
crianças
e retornava o olhar ao meu pai. Sentia que, no carro, todos aguardavam a
minha
decisão. O que o Padre José estaria pensando? E se eu negasse? Creio que
apenas
D. Maria ficaria do meu lado, pois sempre foi minha cúmplice. Preta
velha porreta, filha de negro com índio, bugre. Brava, mas
do meu
lado. Um silêncio se instalou entre aqueles olhares. Os olhos dos
meninos
brilhavam. Não era tirar a bala da criança, era muito mais. Era o meu
bicho de
estimação. Algo de muito especial. Mas o olhar de cada um mexia comigo e
como
mexia. Estiquei os braços e entreguei o jogo para um amigo especial, que
tinha
me dado um botão, feito de chifre de boi, e seria o meu beque central. A
meninada comemorava. E eu? Entrei no carro enquanto todos conversavam
sobre
todos os assuntos, menos sobre aquela doação. Segui em
silêncio até Belo
Horizonte. Acariciava o mico, meu companheiro. Chegando em
casa, meu pai entra no meu quarto e diz. Um dia você vai
entender o tamanho da sua atitude. Realmente, hoje tenho essa dimensão. O
educador
atua em todos os momentos. E eu vivenciei um desses.
Nenhum comentário:
Postar um comentário